terça-feira, 12 de junho de 2012

12-6-1962 / 12-6-2012 = 50 Anos


Ano Novo, vida velha! Acaba de entrar o Ano de 1962, estou na cama no primeiro andar junto á escada, a minha Irmã mais nova a única que cá está, (as duas mais velhas já foram trabalhar para longe) dorme na outra cama o sono dos justos, a discussão no quarto do rés do chão já dura á horas, o meu Pai e a minha Mãe parecem relógios de repetição, o Pai chegou á horas da taberna já com os copos e desata a chamar nomes á Mãe, ela vai respondendo sempre, e a música não tem fim, que merda de vida esta, vou fazer quinze anos daqui a dias, já fui Leiteiro, (vendedor de leite porta a porta) Trabalhador Agrícola, Apontador e Analisador de vinhos e Padeiro mas não me fiz velho em nenhum desses trabalhos e voltei sempre aqui, e ao trabalho agrícola na Quinta do Rui do Rato, mas estou farto desta vida, os dias passam e as discussões não acabam. Ouço passos pela escada acima é outra vez a minha Mãe que se vem deitar ao pé da minha Irmã, e deixa o meu Pai a falar sozinho, a coisa agora ainda piora, porque o som aumenta devido á distância, com ele no seu vocabulário vernáculo e ela a responder á letra, estou farto e digo á minha Mãe que não lhe dê troco que ele cala-se, assim acontece passado algum tempo, finalmente posso dormir.

Os dias passam e as coisa não mudam, hoje é dia 27 de Janeiro, faço 15 anos é Sábado mas o trabalho no campo não tem semana Inglesa, e tem a vantagem de ser o dia de receber a jorna, curta Jorna, andei toda a semana a caminho da Quinta para nuns dias ganhar um «quartel» noutros meio dia, noutros para apanhar umas molhas e não ganhar nada por causa da chuva, chego ao Sábado com um total de dois dias e um quarto de sálario, saímos do trabalho depois do Sol posto e rumamos á Quinta do Porto Franco, na Cortegana para receber os magros escudos que ganhámos nos poucos dias que trabalhámos, chego a casa por volta das dez e tal da noite, tenho uma sopa e um pedaço de frango á minha espera, hoje há rancho melhorado, a minha mãe dá-me os parabéns pela segunda vez nesse dia, já o tinha feito quando me levantei de madrugada, o Pai já dorme e a Irmã pequena também, estou cansado e já não vou até á taberna jogar á bisca (era das poucas distracções que havia aos Sábados á noite), deito-me e adormeço rapidamente.

O tempo vai passando, e as coisa vão piorando, o meu Pai trabalha uns dias mas fica muitos outros em casa na ressaca de muitos dias seguidos sem estar sóbrio, a minha Mãe cada vez mais implicativa pois são quatro bocas e só a minha jorna é curta, ela lá vai escrevendo umas cartas ás Vizinhas que na sua maioria não sabe ler nem escrever, e outros trabalhos na casa destas, o que vai ajudando. Trabalhar fora o dia todo só pela vindima, vai fazendo a ginástica possível para não passar-mos fome, mas está difícil, chega a Primavera começam as pulverizas há mais trabalho e são melhor pagos, mas o meu Pai embora só tenha 55 anos, devido ao álcool já não tem forças para fazer a grande maioria dos trabalhos agrícolas, vai andando a cortar mato para a cama dos animais e pouco mais, eu já ganho igual aos Homens já vai dando uma ajuda, dou tudo o que recebo á minha Mãe, e ela vai-me dando uns tostões para os cigarros, que compro avulso no « Sr. Artur dos Cucos» já fumo há uns três anos, obra do meu Amigo «Jeca» ( não te estou a culpar Jeca, só a assinalar um facto) quando saiu do Seminário em Santarém para comemorar, pois estava lá contrariado foi ao café dos Pais e lá vai tabaco, que fomos saborear juntamente com o Victor, só parei passados mais de trinta anos.

O tempo vai correndo e já estamos em Junho, o calor chegou nesta primeira semana do Mês as temperaturas subiram muito, ando nas últimas pulverizas do ano, agora o trabalho vai ser cortar ervas nas vinhas, surribar, e roçar mato daqui até ás vindimas, isto dá cabo do canastro a um Gajo, no Verão que é a estação actual, o dia tem mais de 15 horas, é certo que temos três quartos de hora para o almoço, duas horas para o jantar e sesta, e ainda quinze minutos para a merenda, esta serve mais para descansar o corpo que para comer, pois este já se foi todo ao almoço, de qualquer modo são muitas horas, tenho que ver se arranjo outro trabalho, pode ser que vá outra vez para as Paredes para Padeiro, já lá estive duas vezes os patrões gostam de mim, mas eu e o Patrão por vezes fazemos faisca, mas é bom Homem tal como a Esposa e os três Filhos, vamos ver o que vai sair daqui, não quero é ficar agarrado á enxada toda a vida, isto não é trabalho, é escravidão.
Os dias passam e a tortura de trabalhar do nascer ao pôr do Sol continua, acompanhado do calor é ainda mais complicado, o meu Pai a semana passada andou quase toda ela bêbado, agora ficou de cama e há três dias que não sai, não come nem bebe, não ralha nem fala nada, a minha Mãe diz que quando ele tiver fome logo se levanta, mas eu estou preocupado porque nunca o vi tantos dias sem se levantar, pergunto-lhe se precisa de alguma coisa e diz que não, desde Sexta que não se levanta e hoje já é Terça dia 12 de Junho quando a minha Mãe me acorda para eu ir trabalhar ás cinco da madrugada, ouço a porta da rua bater, era ele que ia a sair, espreitei pela janela e vejo que leva ao ombro a saca de serapilheira (que servia para abrigo da chuva, para assentar o traseiro na hora da refeição ou o corpo inteiro na sesta), e em cima desta a enxada, pronto já passou a «greve da fome» e vai trabalhar ainda bem, está sóbrio e quando assim acontece pelo menos não á discussões.

Hoje não tenho companhia para fazer os cinco quilómetros que tenho de percorrer até á «Charnequinha», é da maneira que chego mais depressa, pois com a «Tia Oliva do Catuça» não posso correr e assim se o Sol estiver quase a nascer sempre posso dar uma corrida, senão o Caseiro já não me deixa pegar ao serviço e tenho que esperar para trabalhar (e ganhar apenas os três quartéis) subo a Rua direita passo ao pé do Palácio e vem em sentido contrário o meu parente João Miranda (homónimo do meu Pai e primo em segundo ou terceiro grau) demos os bons dias e ele diz-me! ó parente, está ali ao pé do poço do Anjo da Guarda uma saca e uma enxada que parecem do teu Pai, continuou o seu caminho sem dar importância ao assunto, e eu só, ainda de noite lá me dirigi ao poço, estive junto a ele, mas não sei se olhei para dentro dele, ainda era escuro na rua muito mais dentro do poço, mas também não precisava de ver nada, sabia que era verdade, o meu Pai estava lá dentro, bastava-me saber que ele estava sóbrio quando á poucos minutos saiu de casa para não ter dúvidas.

Dirigi-me não á minha casa mas á do meu Tio Júlio, dando-lhe conta do sucedido, a partir daqui não recordo mais nada, não sei onde estive ou por onde andei, foram quase cinquenta anos sem coragem para falar ou escrever sobre o maior desgraça que me podia acontecer, a morte é sempre má, mas quando se morre desta maneira propositadamente em local onde se sabe que o Filho vai passar dentro de poucos minutos! é macabro, é demais, foi um murro no estômago que não consegui superar e vai comigo para a cova, caí e levantei-me muitas vezes daí em diante, andei quarenta e oito anos a remoer sozinho esta mágoa incapaz de falar no assunto com quem quer que fosse, até que o Blogue me fez o que os anos não conseguiram fazer, escrever e posteriormente falar (quase) abertamente no assunto, estou mais aliviado, a partir do momento em que escrevi e falei sobre o assunto á cerca de dois anos. Mas ficou-me ainda a faltar uma coisa, que desde então tenho procurado encontrar.

Faltava-me saber a data do acontecimento, e onde o meu Pai foi sepultado, pois nunca tive coragem de perguntar a ninguém que me pudesse ajudar, o Coveiro da altura já há dezenas de anos falecido, o Sr. Florival que tratou do enterro ou a minha própria Mãe também já partiram, este assunto não tem mais solução, foi á tempo demais para alguém saber responder, restava-me a data, falei com as minhas Irmãs, em especial as com mais idade que eu, mas não me puderam ajudar, falei com os meus Filhos para ver se através da Internet se podia aceder aos Registos Civis, era possível mas pediam dados que eu não tinha, até que a Filha se lembrou de contactar o Padre da Terra que forneceu alguns dados importantes, mas não a data do acontecido, falei com Amigos que me deram a sugestão da Junta de Freguesia, e o meu Amigo Vicente fez o resto, finalmente ao fim de cinquenta anos estou mais aliviado, sei a data da morte do meu Pai, coisa simples mas importante para mim, obrigado aos que de alguma maneira me ajudaram a aliviar o fardo, embora a cruz tenha de a carregar até ao fim.












9 comentários:

António Querido disse...

Antes de mais quero dizer-te, meu amigo, foi boa a decisão que tomaste, escrevendo o que sentias, embora continues a sentir o peso da cruz, já sentiste o alívio de exteriorizares o que tantos anos guardaste no teu interior, penso que todos nós conhecemos em crianças, casos semelhantes, a vida era árdua, trabalhava-se de sol a sol e os tostões não chegavam para sustentar a família e os mais frágeis não aguentavam a pressão psicológica, refugiando-se no álcool, tu carregaste a tua cruz, que pelo que descreves, teve algum peso, mas também há quem as carregasse mais pesadas, a vida é assim, não podemos fugir ao destino!
O meu abraço

Isabel disse...

Olá mano
Fizeste bem em publicar esta parte da história da nossa vida. Desabafas-te e eu também gostei de conhecer a data da morte do pai.
O que vivemos, eu na infância e tu até à adolescência, deixou-nos cicatrizes. As tuas mais profundas que as minhas pois eras um pouco mais velho, tinhas mais consciência, além de teres sofrido na pele, com o trabalho árduo do campo, para ajudares no sustento da casa e para agravar, o teres sido tu o primeiro a dar com a morte do pai.
Como disse o António Querido, infelizmente o que aconteceu connosco, aconteceu e continua a acontecer em muitas famílias e nalguns casos ainda piores que na nossa, onde há violência física. Na nossa, isso nunca aconteceu.
Quem sabe se não fosse tudo aquilo porque passámos, não seríamos as pessoas que somos.
Os nossos pais foram pessoas sérias e honradas. Quanto a isso não há nada a apontar e não temos de ter vergonha do nosso passado.
O único mal do pai, foi ter deixado o álcool apoderar-se dele. Quem o conheceu, inclusive a mãe, dizia que ele era uma boa pessoa.
Quanto à mãe, orgulho-me muito dela. Por todos que a conheceram, será recordada como uma mulher trabalhadora, séria, amiga de ajudar o próximo, e uma mulher inteligente.
Sabes que tenho uma amiga que trabalhava no posto médico onde a mãe ia, que me diz, que gostava tanto de falar com a mãe, que às vezes até fazia um pouco de “batota” mandando entrar para a consulta, pessoas que deveriam ir atrás, só para estar mais tempo a ouvir as suas histórias. Muitas vezes eram as nossas, pois ela tinha um grande orgulho nos filhos.
Como disse o António Querido, não podemos fugir ao destino e este foi o teu.
Como recompensa por tudo o que passas-te, o mesmo destino retribui-te com os filhos e netos lindos.
Para mim esse destino matreiro, já me recompensou com filhas lindas e agora com os netos/as a chegar brevemente.
Um beijinho para todos os Mirandas e um muito especial para ti. Tal como a mãe tinha orgulho dos filhos, eu tenho um enorme orgulho e admiração por ti.
Mana Isabel
PS: Quando passares à Atalaia, se ainda houver nêsperas vai apanhar.

Edum@nes disse...

Era assim noutros tempos como se vivia
Discussão e mais discussão
Sem razão por qualquer coisa se
discutia
E assim se vivia com tristeza e menos alegria.

Hoje quase tudo é diferente
Triste a vida continua
Maltratam tanta gente
Muito vagueiam sem casa pela rua!

Tristemente é assim
Depois de uma vida de trabalho
Os governos papam tudo, sim
E quem trabalhou não tem agasalho!

Vai vivendo das esmolas
Mas seus filhos delas precisar
Quem manda sou os carolas
E o povo tristemente a para eles a olhar!

Muito para dizer
Muito há que lutar
Mais haverá para se fazer
Assim não pode continuar!

Boa terça-feira para ti, amigo Virgílio
um abraço
Eduardo.

Tintinaine disse...

Acho que fizeste muito bem em despejar o saco que carregavas sozinho há 50 anos. Desabafar faz bem à alma e acredito que doravante te vais sentir libertado desse peso que te atormentava a vida.
Respira fundo e segue em frente que o pior já passou.
Um abraço!

Anónimo disse...

Olá meu Pai,

Não sou muito de escrever aqui, partilhamos o que escreves pessoalmente, mas não podia deixar de aqui registar a minha admiração por ti, pela tua coragem e grandeza como o fizeste, ao desatar esse nó de tantos anos, que sozinho guardaste. Hoje de certa forma encontras-te paz para o teu desassossego ao falares abertamente sobre o avô. A vida nem sempre é justa para conosco, caímos para nos levantarmos e aprendermos com cada queda, nada na vida é por acaso, o que ela nos dá também nos tira, mas no final das contas de cada um temos sempre um saldo positivo “termos conseguido viver uma vida” com tudo de positivo e negativo que ela nos tenha dado. Considero este Post uma homenagem à vida e vidas de cada um!

Adoro-te Pai!

Margarida

Piko disse...

Olá grande amigo:

Tenho desde há muitos anos o vício dos livros, procurando neles as histórias que parece que nos faltam na vida real... Afinal, ao ler uma parte significativa da tua vida, quando ainda eras tão jovem, posso entender que muito do que já li tem contornos de verdades que nunca imaginaríamos... A vida é dura, difícil, mesmo que nos portemos bem... Até por isso, por procurarmos portar-nos bem, uma vez que uma boa percentagem, teima em não o fazer... Porém, os teus familiares já perceberam como tudo se passou e estão tirando os dividendos para poderem chegar à FELICIDADE!
Um abraço querido amigo e faz ainda mais um esforço contigo próprio, juntando ao muito que já fizeste:- Não te isoles dos familiares e dos melhores amigos nesta fase da tua vida... Tens todas as condições criadas para isso e fico contente com isso!

Pikó

Laranjeira disse...

Olá Virgílio.
Por coincidencia cheguei ao teu blog e tive a sorte de ler o teu belíssimo texto, baseado nas tuas raizes familiares.Gostei sinceramente.Os portugueses tem de facto histórias lindíssimas que farão inveja a outros povos.Tudo já foi respondido e dito tambem,pelos excelentes comentários.Porém,posso acrescentar muito rapidamente o seguinte: O valor do homem,vê-se não qundo se adquire riqueza material,mas sim,quando se desenvolve uma personalidade nobre.A vida é uma luta como afirmas,mas sem luta não há conquista nem vitória.Estou certo de que toda essa personalidade conquistada em todos esses caminhos difíceis que apontastes é um valor e um exito marcante dígnos de uma vida.
Parabens e um abraço.
Laranjeira

Piko disse...

Amigo Virgílio:

Vais-me desculpar, mas não resisto a perguntar-te se tens algo para me dizer do "nosso" Valdemar Marinheiro... Alguns meses já passaram e estou completamente às escuras... Se souberes, diz-me algo.
Um abração!

Observador disse...

Amigo Piko
Também estou ás escuras quanto a noticias do Valdemar, as últimas foram-me transmitidas pelo Tintinaine á já algum tempo, e que andava em tratamento, e desaconselhado pelos Médicos a andar aqui pela Internet. Esperamos todos pelo seu regresso, o mais breve possível, e recuperado deste contratempo.
Um abraço